Hoje
vai ser um dia muito especial. Papai vai nos levar ao parque de diversão. Já
estão todos preparados, só falta a mamãe terminar de arrumar o cabelo. Agora
são 7h. Chegaremos lá por volta das 8h. Eu fui o primeiro a acordar. Quando
papai chegou ao meu quarto eu já estava de tênis. Ele pegou e olhou um porta-retratos
com algumas fotos minhas e saiu.
Karina, minha irmã, foi a última a acordar. Há alguns dias
que estou ouvindo ela dizer que não tem motivos para ir se divertir. Parece que
ela está o tempo todo triste. Há alguns meses, li na internet que isso pode ser
normal na idade dela. É a tal da adolescência; mas mamãe e papai insistiram que
ela fosse.
Ouvi papai gritando “Vamos, então”. Já estavam todos prontos.
Corri, então, para o carro. Queria ser o primeiro a entrar. Tentei abrir a
porta do carro, mas não consegui. Achei que ainda estava trancada. Ouvi eles
descendo as escadas para a garagem e escondi-me atrás de um saco plástico onde
havia roupas para serem doadas. Papai desbloqueou as portas e, quando Karina
abriu a porta, aproveitei e entrei atrás dela. Ela quase acertou o braço em meu
rosto quando foi fechar a porta e nem pediu desculpas. Fiz cara feia para ela e
a única coisa que ela disse foi que estava com um pouco de frio.
Papai ligou o carro e quando mamãe abriu a porta da garagem
ele saiu. Mamãe fechou o portão e entrou no carro. Todos estavam com cara de
desanimados e estavam em silêncio, então, fiquei quietinho também a viagem
toda. O único som era o do pen drive no rádio tocando Kashmir de uma banda que papai adorava.
Quando chegamos no parque, fomos à bilheteria para pegar as
entradas e ouvi papai dizendo que eram apenas três. Fiquei surpreso porque da
última vez que viemos eu pagava meia entrada. Acho que houve alguma alteração.
Caminhamos até a entrada e papai entregou as entradas para o homem que as
recebia na entrada e ele, em seguida, disse para aproveitarmos o dia. Acho que
ele não estava gostando de trabalhar, pois eu disse “Muito obrigado, senhor”,
mas ele não respondeu.
Depois que passamos a entrada, andamos mais alguns metros e,
de repente, Karina para e começa a chorar. “Eu não vou conseguir”, dizia ela,
chorando. Eu fiquei assustado. Será que ela tem medo de brinquedos de parque de
diversão, pensei. Mas na última vez que viemos ela não fez isso. Ela adorou vir
ao parque da última vez. Lembro-me que, logo que entramos no parque, ela
agarrou minha mão e saiu correndo, puxando-me e dizendo para irmos logo. Então
porque ela estaria chorando desta vez? Estranho.
Mamãe a abraçou e papai ficava dizendo que tínhamos que
superar o que aconteceu. Que tínhamos que enfrentar o passado. E que ficar em
casa trancados não mudaria o que aconteceu. Apenas pioraria. Eu não estava entendendo
nada. Karina disse que sabia que nada mais poderia ser feito, mas que ainda não
estava preparada para aquilo.
- Tudo bem, filha. Vamos voltar – disse papai.
Eu fiquei assustado e ao mesmo tempo triste porque iríamos
voltar para casa, pelo que entendi, e eu nem sabia o porquê. Tentei perguntar o
motivo de voltarmos, mas ninguém me respondia. Sequer olhavam para mim. Apenas
os segui de volta para o carro. Entrei atrás da Karina de novo. Eu fiquei
bravo, mas no carro não tentei perguntar de novo o que estava acontecendo. Karina
ainda chorava e, agora, mamãe também estava chorando.
Ao chegar em casa,
mamãe abriu o portão e papai entrou com o carro. Karina abriu a porta e saiu
correndo. Acho que correu para o quarto. Nem fechou a porta do carro. Eu saí do
carro e papai fechou a porta. Trancou o carro e subiu as escadas. Subi, em
seguida. Fui até a porta do quarto da minha irmã. Ela estava deitada em sua
cama. Aproximei-me e ela puxou um cobertor e cobriu-se. Acho que não queria
conversar.
Decidi, então, falar com meu pai. Fui até o quarto dos meus
pais e eles também estavam deitados na cama. Aproximei-me e mamãe reclamou que
estava sentindo frio. Papai levantou-se e pegou um cobertor fino e cobriu minha
mãe. Ela ainda chorava um pouco. Fiquei triste por vê-la assim, então nem perguntei
nada.
Desci até a sala e sentei-me no sofá. Estava com muito sono,
talvez por acordar cedo. Deitei-me. Adormeci. Acordei algumas horas depois e
levantei-me do sofá. Escutei conversas na cozinha e fui até lá. Estavam meus
pais sentados à mesa jantando. Junto estava um homem segurando um microfone e
um outro segurando uma câmera. Enquanto eu me aproximava devagar, ouvi uma
coisa que me fez parar.
- Sinto muito pelo que aconteceu, Richard – disse o homem com
microfone ao meu pai.
- Ainda está sendo muito difícil para nós – disse meu pai.
Parei, pois tive a impressão de que todos sabiam de alguma
coisa. Menos eu. Em seguida, papai segurou a mão da minha mãe e foi neste
momento que ele disse uma coisa que me deixou perplexo o suficiente para sair
correndo dali.
- A morte do nosso filho vai ser uma dor que nunca
superaremos por completo. Ainda mais do jeito que ele foi morto.
Sai correndo para meu quarto. Não entendi por que papai disse
aquilo para aquele homem que eu nem conhecia, mas deixou-me muito triste. Acho
que ele não gosta mais de mim. Joguei-me em minha cama e chorei até adormecer.
De repente, sinto alguém me cutucando os ombros e acordo. Quando me virei para
ver quem era, fiquei impressionado. Era uma pessoa estranha. Eu nunca a havia
visto, mas, inexplicavelmente, não senti medo dele. Parecia um anjo. Fiquei
impressionado porque estava brilhando. Uma luz irradiava de seu corpo.
Ele estendeu-me a mão e disse que estava chegando a hora de
eu partir. Disse que era para eu ir com ele para me mostrar uma coisa. Eu
segurei sua mão e, de repente, estávamos de volta à cozinha, diante da mesa de
jantar. Assustei-me. Ele pediu, então, que eu ouvisse o que papai estava
dizendo. E, a cada palavra, eu sentia que uma lâmina perfurava meu coração.
- De tanto que nosso filho insistiu, deixamos o trabalho
extra de lado e planejamos um final de semana em família – explicava papai. –
Era a primeira vez da Karina no parque e, quando entramos no parque, ela
segurou a mão dele e disse que iriam se divertir. Havíamos combinado de nos
encontrar na entrada às 18h para irmos embora. Infelizmente, não ficamos nem
uma hora nos divertindo. Enquanto eu e Michele estávamos na fila para a
montanha-russa, Karina aparece desesperada dizendo que não estava encontrando o
Vítor.
Gelei quando ouvi meu nome.
- Saímos da fila – continuou mamãe – e fomos procurar pelo
nosso filho. Procuramos por meia hora e nada. Pedimos, então, a ajuda do parque.
Eles divulgaram pelo microfone as características do Vítor, como as roupas que
estava usando. Esperamos uma hora e ninguém apareceu com nosso filho. Chamamos
a polícia.
- Quanto tempo levou para que encontrassem seu filho? – Perguntou
o homem do microfone.
- A polícia procurou por dois dias. No segundo dia encontraram
seu corpo numa pequena área cheia de árvores atrás do parque – explicou papai. –
Ele estava no chão com sinais de estrangulamento e algumas facadas pelo corpo.
Papai começou a chorar. Mamãe começou a chorar. E eu também.
- Talvez, se não tivéssemos o deixado somente sob os cuidados
da Karina, isso não teria acontecido – disse mamãe. – O pior é que ela se culpa
pelo que aconteceu, mas não foi culpa dela. Ela nos disse que, enquanto ele foi
ao banheiro, ela foi comprar sorvete numa das barraquinhas que ficava em frente
ao banheiro. Ela voltou com o sorvete, mas ele demorou muito para sair. Ela
pediu para que um homem que estava entrando no banheiro verificasse se estava
tudo bem com seu irmão. O homem disse que não havia nenhuma criança no
banheiro. Foi quando ela nos procurou, desesperada.
- O pior é que nem sabemos quem o matou e por que o matou.
Ele era apenas uma criança – disse papai, ainda chorando. – Desculpem-me.
Neste momento, recordo-me do acontecido. Lembro-me que Karina
deixou-me na porta do banheiro e disse que ia comprar sorvete. Entrei no banheiro
e havia um homem limpando. Ele tinha um latão enorme de lixo com rodinhas. Era
funcionário do parque. Não havia mais ninguém no banheiro naquele momento. Ele
me cumprimentou e, sem motivo algum, deu um soco no meu rosto.
Depois,
só me lembro de acordar dentro daquele latão, já do lado de fora do parque. Eu
ainda estava meio tonto, sem saber o que havia acontecido. De repente, o latão
para de se mover. Olhei para cima e vi aquele mesmo rosto do homem que me bateu
antes. Ele agarrou-me pelos braços e me tirou do latão. Colocou-me no chão e
tirou uma faca do bolso de trás. Eu estava com muito medo. Ele disse para eu
ficar tranquilo, pois ele sabia que eu iria para céu. Então eu não gritei.
Perguntei por que ele estava fazendo aquilo e ele respondeu dizendo que algumas
coisas são inexplicáveis. Eu fechei os olhos. Foi quando senti uma dor
insuportável, bem no peito. Esta foi só a primeira. Senti mais algumas, mas
cada vez mais fracas. E parou. Senti, então, suas mãos em meu pescoço. Pensei
em fazer alguma coisa, mas já não conseguia. Meu corpo estava ficando mole e
senti que a vida estava saindo do meu corpo. A última coisa que lembrei, foi de
ter visto os lindos olhos azuis do meu assassino e a lembrança dos rostos dos
meus pais e da minha querida irmã. Acho que adormeci.
Olhei
para o homem estranho que estava comigo e ele sorriu.
-
Você sofreu, meu filho. Mas fique em paz. Está na hora de partir.
Entendi,
então, que, naquele dia, eu havia morrido. Parecia um sonho, pois acordei em
minha cama. Mas, o homem de branco explicou-me que eu não queria ir embora,
pois não sabia que havia morrido. Por isso, ele me mostrou a entrevista que
estava acontecendo em casa um mês depois da minha morte. Peguei sua mão e vi
uma luz branca, muito forte, vindo em nossa direção. E esta foi minha última
lembrança desta curta vida.
Samuel
Pereira